sexta-feira, 28 de maio de 2010

Quatro Perguntas para Daniel Piza - especial



Daniel Piza
, o melhor colunista cultural brasileiro em atividade (e mestre deste que vos escreve...), já concedeu entrevista a mim, em 2008, por e-mail. Esta foi feita pessoalmente, na sua sala na redação de O Estado de São Paulo. Entre sua mesa e estantes apinhadas de livros e revistas, recebendo a todo momento, no monitor, avisos de novos comentários de leitores no seu ótimo blog, o jornalista, crítico, escritor e tradutor conversou comigo sobre seu mais recente livro. Em “Amazônia de Euclides – Viagem de Volta a um Paraíso Perdido” (Leya, 192 p.), Piza oferece a reportagem completa que produziu para o Estadão em março do ano passado, quando, para lembrar o centenário da morte de Euclides da Cunha (1866-1909), foi à região amazônica, acompanhado do fotógrafo Tiago Queiroz, a fim de refazer o percurso realizado pelo escritor carioca no rio Purus, no Acre, perto da fronteira com o Peru, em 1905. Em tal expedição, o autor de “Os Sertões”, designado para comandar a comitiva brasileiro-peruana de reconhecimento da região, foi além da tarefa de demarcar o curso e a nascente do rio: também colheu dados para um exame social e histórico daquela porção da Amazônia, trabalho que apresentou nos volumes “Contrastes e Confrontos” (1907) e “À Margem da História” (1909). Piza, então, mais de cem anos depois, atualizou as informações e análises de Euclides, comparando a realidade daquele início de século 20 com a que ele e Queiroz encontraram agora (fotos aqui). Os dois subiram o rio em uma baleeira – batizada, é claro, de Euclides da Cunha – e fizeram várias paradas para conversar com a população ribeirinha. Nos dez dias de viagem, Piza pôde observar não só a beleza da Amazônia, mas os “dramas brasileiros”, como diz nesta entrevista, existentes por lá. Aqui, o biógrafo de Machado de Assis ainda comenta a prosa de Euclides, também um grande escritor nacional, e fala do restrito espaço para grandes reportagens nos jornais de hoje.
(Lucas Colombo)



1. Caro Piza, você acredita que existe espaço na imprensa brasileira para grandes reportagens, como essa que você fez na Amazônia, nesses tempos em que a maioria dos leitores procura o que há de mais rápido e superficial? Já ouvi você falando sobre isso e dizendo que sim, mas o assunto é fascinante - então, por favor, fale mais um pouco...

Piza – Bom, são duas perguntas. Primeiramente, acho que existe, sim, mas ainda muito pouco, se comparado com outras épocas do jornalismo brasileiro ou com o jornalismo atual de outros países, como o inglês, o americano, e mesmo o italiano e o francês – até porque nesses países há muito mais publicações, mais revistas semanais. Aqui no Brasil só temos revistas semanais de notícias, não de cultura ou de jornalismo “de fôlego”. Mas aumentou o espaço nos jornais para isso. O Estadão tem dado mais espaço para grandes reportagens – tenho batalhado por isso aqui –, a Folha às vezes abre o caderno Mais! para reportagens mais longas, surgiram a revista Piauí e a Granta Brasileira, há blogs fazendo coisas nesse sentido... E em relação ao fato de as pessoas quererem matérias mais curtas e sintéticas, concordo que é assim, mas ainda acredito que há uma minoria que gosta de textos mais longos. E o jornalismo literário, a grande reportagem, nem sempre precisa ser longo, também. Há reportagens que são curtas, mesmo, mas têm uma qualidade tal que transcende isso. Alguns textos do George Orwell, como “O Abate de um Elefante” e “Um Enforcamento”, ocupam quatro ou cinco páginas de livro, o que daria uma ou duas de jornal standard. A Piauí tem vendido bem – vende mais que a Cult e a Bravo!, por exemplo –, livros-reportagem têm sido lançados... O “Amazônia de Euclides” é um livro-reportagem: eu relato a viagem que o Euclides fez em paralelo à viagem que nós fizemos, numa forma narrativa de não-ficção. E o livro está indo super bem. O trabalho foi muito bem acolhido, me chamaram para tudo que é lugar... Então, há público para isso, há espaço, mas tudo ainda muito pequeno, muito tímido.
Quando o Décio de Almeida Prado fez o projeto do “Suplemento Literário” do Estadão, ele escreveu lá: “não devemos transigir com a preguiça intelectual do chamado leitor médio”. A frase é lapidar. Você tem que chegar ao leitor não especializado, não iniciado, e atraí-lo, seduzi-lo, mas sem fazer concessões, demagogias, sem apelar a ele. Você tem que trazê-lo para cima, nivelar para cima, não nivelar por baixo. Não fazer populismo, mas ir lá, esforçar-se para seduzir o leitor. Mas, também, não adianta pensar que, ao escrever sobre Tolstoi, você será lido por milhões... Cada coisa no seu tamanho. Mas é preciso, sim, criar um público mínimo para gerar uma massa crítica maior do que a atualmente existente.

2. Do trabalho de Euclides da Cunha em Canudos e na Amazônia, o que serve de exemplo a repórteres? Que qualidades a serem buscadas têm esses relatos que ele fez?
Piza – Em primeiro lugar, é preciso ressalvar que o Euclides foi um repórter ao estilo daquele tempo. Não se deve imitá-lo, porque, hoje em dia, diríamos que os relatos dele “editorializam” demais. A narrativa às vezes assume ares de editorial, de uma opinião cabal sobre as coisas, inclusive com muitos preconceitos. Mas o Euclides era essencialmente um jornalista, e por isso eu disse certa vez que ele foi o primeiro jornalista literário brasileiro. Porque não só entendeu que tinha uma grande história na mão – que não era a guerra, era o fracasso do exército republicano diante daquela situação no sertão. Ele também entendeu que essa história tinha muitas implicações e foi capaz de apontar essas implicações para o leitor do livro. Nas reportagens que ele enviou ao Estadão, já transparece um pouco isso. Mas depois que voltou de Canudos, muito impactado pelos últimos dias de combate – ele não viu até o final, mas chegou a ver a parte bem dramática daquela carnificina da guerra –, foi elaborando aquilo dentro dele, e transformou numa obra-prima, que mistura ensaio científico, antropológico, com uma narrativa de não-ficção, principalmente no capítulo “A Luta”. E é aí que eu considero um grande pioneirismo de jornalismo literário, porque o Euclides conta aquela história com a riqueza de implicações que ela tem. Ele não colheu muitos depoimentos, porque não teve chance, estava dentro de uma tropa, mas relatou a situação do lado de lá – “advoga pelo sertanejo”, como diz. Ele revelou quais eram os objetivos da república, campanha a campanha, e os erros e acertos cometidos. E, sobretudo, entendeu que não se tratava apenas de uma guerra entre um reduto de monarquistas rebelados e o exército, mas que era um drama que representava o Brasil, os dramas do Brasil na época, a dúvida de “pra que lado ir”, naquela fase de formação do país. Então, acho que Euclides deve ser muito lido e seguido nesse aspecto: de um repórter que viu na ocasião que testemunhou não só uma “historiazinha”, mas a História, com H maiúsculo.

3. Você comentou que, além da oportunidade de conhecer mais profundamente a região amazônica, uma razão fundamental para fazer a reportagem foi a admiração pela literatura de Euclides. Eu também gosto de sua prosa. Mas o estilo ‘pomposo’ do autor, sua escrita barroca, rebuscada (para cada substantivo, inseria um adjetivo, e construía períodos longos), não pode espantar o leitor contemporâneo?
Piza – Certamente. Conheço muita gente que diz: “puxa, falam tanto desse livro, e eu não consegui passar da página 30...”. O vocabulário é mesmo muito amplo; em alguns momentos, inclusive, o Euclides tenta dar uma impressão científica à coisa, de uma forma até um pouco flácida. É chato, porque os períodos são realmente muito longos – tanto que os textos sobre a Amazônia, que ele fez depois, já têm períodos menores. Neles, o Euclides é mais objetivo na escrita, faz frases mais sintetizadoras do que procura dizer. Mas é mesmo difícil de ler. Acho, porém, que ler direto “A Luta”, por exemplo, não é nenhum crime... Eu costumo dizer que o Euclides era o “Google Earth”: ele começa lá na grande dimensão, na caatinga, no semi-árido, aí diminui para aquela etnia, e depois “fecha” na guerra. Mas se o leitor for direto para a descrição da guerra em si, não tem problema. Recentemente, por causa de um curso, fui reler o capítulo “A Terra” – um dos livros que mais releio é “Os Sertões”, aliás – e, se você ler em voz alta algumas passagens, deixando pra lá palavras desconhecidas, começa a captar a música daquele estilo. Euclides tem uma prosa poética e científica, ao mesmo tempo. Tem uma sonoridade. Ele era aficionado por poesia. Assim como Machado, o desejo dele era ser poeta romântico, como Castro Alves, Victor Hugo. Felizmente, os dois fracassaram e foram para a prosa (risos)... Levaram esse “fracasso” para a prosa brasileira, enriquecendo-a muito. Então, o leitor deveria ter esse ponto de vista. Deveria saber da necessidade de insistir. Eu sou muito a favor da leitura guiada pelo prazer, escrevo muito sobre isso. Mas não o prazer passivo, aquele em que você vai lá, abre o livro, espera dez minutos e vê se gostou ou não. É o prazer conjugado com esforço. Precisa se esforçar, perseguir, insistir, ler os críticos para entender o contexto e a riqueza daquela prosa, porque às vezes tem detalhes que te escapam por você não estar acostumado àquilo. A insistência faz parte da formação cultural, tanto quanto o prazer.

4. Você sempre foi um jornalista com uma visão cética e crítica do país – e, por favor, continue assim...(risos). Que tipo de situação ou comportamento você viu na Amazônia e considerou representativo do “Brasil” como um todo, para o bem ou para o mal?
Piza – O problema é que bem e mal se misturam muito... lá, especialmente. Veja a questão social. É um dos piores IDHs (Índice de Desenvolvimento Humano) do Brasil. Há alta mortalidade infantil: as crianças têm muita verminose, as condições de higiene e saúde são mínimas. A educação é péssima: eles têm três dias de aula por semana, seis meses por ano. São analfabetos funcionais - meninos de 14 anos dizem que sabem escrever, mas só escrevem o nome, não sabem escrever um bilhete. Esta, aliás, é a grande mentira das estatísticas brasileiras na atualidade, é o grande escândalo brasileiro atual. Mas aí você pode dizer: "bom, por outro lado, os avós deles sequer sabiam escrever o nome, sequer tinham documentos..." Eu acompanhei a documentação de povos ribeirinhos, e ver as pessoas obtendo RG e certidão de nascimento pela primeira vez na vida é emocionante. O Bolsa-Família chega lá, é verdade. Muito melhor que chegue do que não chegue. Só que o Brasil tende a se satisfazer com esse patamar. E não é assim; a vida exige mais, a civilização é exigente, não é fácil. Por isso a democracia é muito boa: ela permite sempre rediscutir as coisas, e não achar que a força inercial nos levará ao paraíso.
O brasileiro tende a achar: “ah, estamos quase lá, é uma questão de tempo...”. Não é uma questão de tempo: é de luta, de esforço, de conscientização, de ruptura com certas coisas do passado, como os Sarneys e ACMs da vida... Se a situação fica melhor no prazo de cinco ou dez anos, o brasileiro pensa que vai ficar melhor no prazo de 50... Mas não: em 50 anos o mundo vai mudar, os desafios serão outros, e temos que ficar atentos a isso. Por exemplo: o Brasil continua sendo exportador de commodities – frango, carne, soja. São produtos que têm uma sofisticação, o trabalho da Embrapa por trás. São bons para o país, trazem dividendos para cá, mas não podemos viver só disso. O Brasil não pode ser uma grande fazenda. Nosso país é industrializado, tem um parque industrial respeitável. E lá na região do rio Purus, o que se vê é: numa vila de cem pessoas, 80 são crianças, 15 são mulheres e cinco são homens. Por quê? Porque gerar filho virou um bom negócio. Uma mulher gera um filho por ano e, então, tem seis salários mínimos por ano. Naquela região, quatro mil reais anuais representam muita coisa. Mais cento e poucos reais de Bolsa-Família por mês... as mulheres dominam o pedaço. E geram filho atrás de filho para continuar dominando o pedaço. É toda uma nova geração sendo posta no mundo sem perspectiva de futuro. Há perspectiva de presente: poder ir à escola e a mãe receber um dinheiro para poder comer alguma coisa. Mas isso não é perspectiva. Perspectiva é receber uma escola de qualidade, atendimento de saúde de qualidade, existir um mínimo de vida produtiva naquela região – pois eles vivem da cultura da subsistência: plantar, caçar, pescar e comer. No máximo, fazem uma troca com um vizinho, um escambo. Não existe fruticultura, piscicultura, pesquisa científica... A Amazônia inteira tem menos da metade de doutores do que a USP. Então, sem enfrentar essas questões da produção e do conhecimento, a civilização, no melhor sentido da palavra, não consegue chegar àquele lugar. Não ‘civilização’ que destrói o ambiente: pelo contrário, que trabalha junto. Como acontece lá em Juazeiro, Petrolina: o mapa do IDH mostra um bolsão de exceção no mundo do semi-árido, porque ali a Embrapa entrou, fez uma divisão de terras... As pessoas pagam pela água, pois, num lugar onde chove só dois meses por ano, a água vai sair cara mesmo. Só que elas pagam sabendo o que fazer com essa água. Que não é só para beber, mas para irrigar, irrigar sem perda. É para plantar, mas não plantar só jerimum, também plantar goiaba para vender aos japoneses... Existe uma lógica produtiva ali e uma infraestrutura dada pelo conhecimento, que, no caso, vem da Embrapa. Só se resolverá o problema do Acre, da Amazônia, se houver esse tipo de raciocínio. Tem que se criar zonas produtivas na Amazônia e zonas intocáveis na Amazônia. O que se vê hoje é só devastação, que prejudica os dois lados.

Acho que um dos dramas do “Brasil lulístico” e “pós-lulístico” é esse: como dar uma perspectiva de futuro produtivo para uma geração que está sendo induzida a se multiplicar por força do assistencialismo. Assistencialismo é fundamental, todo país tem, principalmente em fases em que este país ainda está buscando desenvolvimento. Mas acredito que é preciso pensar mais em médio e longo prazo. Brasileiro é muito imediatista. A nossa cultura é a do “sem retorno imediato, não quero”. Sérgio Buarque diz isso em “Raízes do Brasil”. Embora o Brasil que ele analisou fosse muito diferente do Brasil de hoje e ele tivesse uma desconfiança grande em relação à democracia americana, que se mostrou extremamente bem-sucedida, Buarque foi o sujeito que melhor leu o Brasil. Um país onde ainda domina o laço pessoal, dominam as relações imediatas, e não o raciocínio de médio e longo prazo. Organização não vai acabar com a capacidade de improviso, a alegria, que o Brasil tem – mas se só tem isso, não serve para muita coisa. O improviso só ganha se tiver o respaldo da organização. Não a organização castradora, mas a inteligente. E falta organização inteligente no Brasil, em tudo. Em qualquer empresa, sempre há um cara que resolve tudo, sem delegar funções aos outros. Na OSESP (Orquestra Sinfônica do Estado de SP), o maestro diz: “a orquestra sou eu”. No Senado, Sarney e Renan brandem documentos falsos num espaço público e passam impunes. O Brasil todo é mal-organizado, falta muita seriedade ao país. E seriedade, inclusive, em nome do prazer, da alegria, do improviso, da informalidade... Esse é o drama brasileiro.

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